sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Proteção aparente que aumenta vulnerabilidade

Fonte: Pexels.com


Tenho percebido nas orientações para evitar assédio e violência contra mulheres a divulgação paralela da ideia de que o convívio em ambientes exclusivamente femininos permitiria maior segurança e empoderamento, algo que se afasta da proposta originária de mútuo apoio – e que deveria ocorrer entre humanos, por sermos humanos.


Entendo o argumento de grupos femininos, de certa forma fui criada assim, com livre trânsito em casa para as amigas enquanto amigos só em datas específicas. Mas há grande diferença entre apoiar uma mulher quando há boicote devido à sua condição feminina (o que deve ser sempre feito e também por homens) de evitar ou não aceitar homens em grupos.


Pense rápido: se você quisesse atacar mulheres, preferiria um ambiente onde só houvesse mulheres ou um ambiente em que você não sabe quantos homens tem? Eu sinto um desconforto muito grande em andar no transporte público do Rio de Janeiro naqueles horários de vagões exclusivos de mulheres - e se eu entrar no "errado"? Realmente não sei quanto isto significa aumentar a minha exposição ao risco de sofrer alguma violência.


Vou dividir com você alguns exemplos para desmistificar a falsa segurança que tenho percebido em mulheres que preferem se excluir de grupos mistos e que não raro justificam a presença masculina como autorização da vítima para atos violentos (lembrando que a vítima nunca é culpada). O mais óbvio deles é de que “boa-noite-cinderela” e outras substâncias equivalentes podem ser colocadas na bebida por homens e por mulheres. Vigiar o copo é imprescindível sempre que as pessoas à volta ainda não sejam de seu convívio já há algum tempo, precaução aplicável a todos os gêneros.


A simpatia e falsa empatia estão presentes na ação de estelionatários, assim como a manipulação para psicopatas, sejam homens ou mulheres. É um erro abrir a guarda para uma mulher estranha: é uma pessoa estranha a você e assim deve ser tratada. Se haveria receio em abordar um assunto ou ter uma ação em relação a um homem desconhecido, não se deve mudar de postura por ser uma mulher desconhecida.


Eu tenho costume de viajar e ainda nutro preferência pelas acomodações compartilhadas, desde os albergues da juventude, administrados por um braço da igreja católica, aos “hostels” com regras menos rígidas. Pois bem, as duas vezes que mexeram nas minhas coisas eu estava em quarto feminino: cheguei, deixei meu chapéu de inverno em cima da cama e fui ao banheiro. Quando voltei não estava lá. No quarto estava eu e duas alemãs, que se fizeram de desentendidas. Fiquei sem. Na outra vez, emprestei um pente de madeira e a americana que usou elogiou muito, no dia seguinte, cadê?


Já em quartos mistos nunca tive problema. Hoje a minha percepção é de que fui menos diligente. Baixei a guarda pela falsa sensação de segurança gerada por imaginar estar entre iguais a partir de estereótipos que me foram culturamente ensinados. 


Aqui no Brasil já perdi a conta de quantas vezes e em quais modalidades tentaram me assaltar, quantos assaltos já assisti e quantos assédios ou brigas violentas de casais presenciei. Sabe quando foi a única vez que me levaram dinheiro? Em Atenas, em local turístico considerado seguro e muito próximo a policiais: um casal de indianos segurando um mapa me pediu para trocar 5 Euros, abri a bolsa e contei as moedas – conversando com a menina que eu pensava ser turista como eu, olhando para a mão e com a bolsa aberta, o rapaz levou-me 20 Euros que estavam no bolso menor. O prejuízo poderia ter sido desastroso se ele tivesse conferido os outros bolsos. Só percebi o furto horas depois. Fosse em outro lugar ou um morador local, sequer teria deixado terminar a pergunta, mas turistas como eu, como não ajudar, não é mesmo?


De tanto conhecer gente diferente de mim, de tanto visitar lugares turísticos e nada turísticos muito contrastantes ao meu mundo, passei a compreender que o hábito de tentar enquadrar as pessoas que conhecia prejudicavam a mim mais do que tudo.


É impossível identificar de pronto quem está à sua frente: nacionalidade pode não significar o que você sabe sobre uma cultura, gênero não define índole, assim como os hobbies, a motivação e a idade em que saiu da casa dos pais pode falar muito mais da pessoa do que sua profissão ou onde vive. Perceber estas nuances leva a abrir a guarda em lugares pouco prováveis e cair fora de atrações aclamadas antes de seu fim.


Parece estranho? Permita-se ao menos a reflexão das vantagens de não esperar uma viagem para conhecer pessoas e lugares de contexto diverso ao seu – e conhecê-las sem classificá-las - pois é um exercício que merece treino para ser bem aproveitado: evoluímos como espécie catalogando em segundos quem é parecido conosco e quem destoa, abrindo ou fechando a guarda imediatamente.


Quem imaginamos ser parecido e concordar com nossos posicionamentos é mais confortável de lidar, restringir o convívio a este grupo é o grande perigo - o outro pode estar fingindo para ser aceito. Sem a diferença nos congelamos no tempo e no espaço incapacitando o saber lidar com situações adversas; sem o costume da convivência com o diferente qualquer adversidade poderá gerar pânico. Medo só vale a pena enquanto não nos atrapalha. Para mim, o isolamento entre iguais amplia as situações de medo.


Já enfrentei muita roubada e saia justa, faz parte, mas elas vêm diminuindo com o tempo, quanto menos carimbo pessoas, situações e lugares melhor consigo interagir e intuir com o que e quem estou lidando. 


Ao parar de tentar identificar os outros, passei a dar mais liberdade a mim. Conheci lugares graças a ter deixado de lado preconceitos. Também cada vez mais encontro pessoas que se propõem ao inusitado e ao respeito de aceitar também o que não compreende do outro. É uma persistência que vale a pena e percebo mais resultado do que me forçar a ficar em grupos fechados: é a abertura que permite, no que ainda não estou forte, perceber a minha vulnerabilidade e seguir o fluxo natural da vida.


Foi o discurso de alguns grupos femininos que me motivaram a parar para escrever aqui, mas é possível ler o texto a partir de qualquer carimbo que a pessoa se dê. Se incomoda você o que escrevi, pense qual rótulo você se dá e, se você resolvesse ser ou fazer diferente, quem entre os seus grupos de amigos e familiares aceitaria a mudança sem crítica. Quanto maior a lista da sua resposta, maior a liberdade e menor o medo para viver.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Revolutionary Love

Na biblioteca são quinze computadores em três mesas. De onde estava, tentando-se concentrar na pesquisa, enxergava 5 telas – em uma delas passava um filme. 

Não conhecia nenhum dos atores e a montagem das cenas chamou a atenção: o close nas mãos indicava o que os personagens sentiam. Os protagonistas são excelentes.

Mesmo usando lentes que o oftalmo indicou alterar, conseguia ler perfeitamente a legenda. O humor do enredo também era diferenciado e preferiu deixar a pesquisa de lado. De repente, no meio da história, a tela foi desligada. Ficar sem saber o fim? Jamais!

Levantou-se, foi à tela apagada, ligou-a e mudou de pesquisa: descobriu no histórico que não era filme, mas uma série - e só conseguiu parar de ver 3 dias depois, no último episódio da primeira temporada.

Como não se encantar com uma programação que Google e Facebook não sabem que existe, mas que já foi vista por mais de 2MM de pessoas?

Confira: http://kissasian.ch/Drama/Revolutionary-Love 

sábado, 4 de novembro de 2017

Entendi o cinema mudo

Soube da programação por acaso. Noite linda de primavera, lua cheia e 26°. Fui confiando na curadoria do evento: apenas sabia que um filme seria projetado na parede externa do auditório do Ibirapuera enquanto a orquestra tocaria ao vivo (foto acima) para celebrar o final da 41a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

O filme chamava-se "O Homem Mosca", de 1917. Uma comédia de riso fácil com a magia da música. Se fosse em um telão com reprodução do som (a forma como os filmes antigos nos são acessíveis) talvez eu risse menos.
L
Lembrei-me das aulas de livreto, em que o professor contava que as óperas eram apresentadas entre piqueniques com animadas conversas, interrompidas para ouvir os cantores famosos da época, que muitas vezes cantavam músicas sem qualquer contexto com a ópera, só para exibir sua voz. 

Tal hábito de conversar com música e tendo alguma cena para distração foi levado pelos imigrantes italianos a Nova York, popularizando o cinema e atrapalhando quem ia às sessões para acompanhar o filme: a introdução de novas tecnologias (como som) ajudou a manter o público com poder aquisitivo nas salas de cinema, estratégia utilizada até hoje.

Na foto, há pessoas de pé: são vendedores ambulantes que insistiam em berrar e tirar a visão do público. Para quem não conhece o lugar, senta-se na grama e de qualquer ponto avista-se o palco. Será que alguém comprou água ou cerveja durante os 60 minutos de exibição? Não vi ninguém comprando.

Os vendedores deixaram de se divertir e ainda por cima atrapalharam a diversão de seus potenciais clientes, em uma demonstração de que não basta acesso (à cultura, gratuito) é preciso permitir-se acessar.