- Alô.
- Olá, estou retornando uma ligação sua, de ontem à tarde –
quando o telefone tocou não tinha condições de atendê-lo.
- Não lembro... Quem é você?
- Sou a usuária do telefone que você vê no seu celular. Seu
telefone constava como fora de área, por isso não consegui retornar a ligação
antes.
- Ok, mas seu nome, para eu tentar me lembrar.
- Por uma questão de segurança, por enquanto, prefiro não me
identificar. Ligações desconhecidas e telefones desligados por longo tempo
podem indicar ligação originária de algum presídio.
- Deve ser isso, você identificou que eu ia te aplicar um
golpe, agora não vou mais conseguir. Francamente! Faço várias ligações por dia.
Mas ontem à tarde... posso ter digitado o número errado.
- Não vou discutir, se você se lembrar do motivo da sua
ligação e ele for relevante, meu telefone você já tem.
Desligaram o telefone e foram assistir à mesma programação
da TV, cada um em sua casa.
* * *
- Alô.
- Olá, estou retornando uma ligação sua, de ontem à tarde –
quando o telefone tocou não tinha condições de atendê-lo.
- Não lembro... Quem é você?
- Nossa está tocando uma música alta perto de você, está
difícil de escutar.
- É... um caminhão de som aqui da rua. Aaaaaaaaaiiii!
- O que houve?
- Um carro passou na poça de água da sarjeta e me molhou
toda!
- Acho que estou te vendo: de terno azul escuro, bolsa e
sapato vermelhos.
- Fala mais alto, tem música muito alta próximo a você.
- Acho que não nos conhecemos, você pode ter me ligado por
engano, mas é o mesmo caminhão que fazia propaganda próximo a você que agora
está próximo a mim.
- Conhecidência!
- Pois é, vou ter que desligar porque vou fazer a unha.
- Eu sou nova na região e estava precisando da indicação de
uma manicure...
- Fica aí onde você está que eu te levo para conhecer a
minha.
Foram juntas à manicure, ficaram amigas, e nunca mais
falaram sobre o tal telefonema do dia anterior.
* * *
- Alô.
- Olá, estou retornando uma ligação sua, de ontem à tarde –
quando o telefone tocou não tinha condições de atendê-lo.
- Não lembro... Quem é você?
- Pelo o que todos dizem, eu sou o melhor representante comercial:
vendo o que você precisa, compro e troco o que você não quiser mais.
- Qualquer coisa?
- Tudo que for lícito ou eu tenho, ou está para chegar.
- Ando sem tempo, você poderia ajudar bastante. Podemos
marcar uma happy hour?
- Fechado!
Encontraram-se e vários negócios foram feitos a partir dali.
Sem muito esforço seu segredo permanecia guardado: ligava aleatoriamente para
telefones, passava por amigo e, assim, conquistava novos clientes.
* * *
A vida é a melhor ficção. Em segundos tudo muda, não adianta
planejar. Planejar gera ansiedade (quando vai acontecer?) e frustração (por que
não aconteceu ainda?). Existe uma aparente lógica para o desenvolver da vida,
claro, mas convenções sociais nem sempre são úteis. Somos ensinados que na vida
adulta adquire-se responsabilidade, só que já nascemos naturalmente
responsáveis. O motivo de alguns perderem isso no decorrer da existência, não
sei.
Brincar é a principal atividade infantil – e toda
brincadeira é combinada antes, instintivamente há preocupação com que o outro
participe e se divirta também. Desde o brincar de esconder-se, do pega-pega, do
“faz de conta que...”, o que vai acontecer é combinado antes. O momento da
brincadeira terminar também o é. Mesmo assim, com tudo combinado antes, às
vezes não dá tão certo, como quando a mãe interrompe para um lanche.
Crianças grandes também podem continuar brincando de “faz de
conta” de forma salutar, censurar-se só atrapalha o viver e demonstra
preconceito. Impressionante que para alguns seja impensável brincar que o
taxista é seu motorista particular, mas não se importam em adquirir um veículo
cujo leasing não é possível pagar. “Fazer sinal para o Jarbas parar” é atitude
de criança grande responsável. Ter além das posses é enganar, mentir –
prejudica quem confiou, mesmo que a confiança tenha sido por parte do vendedor.
O mesmo pode ser empregado em relação à aquisição de roupas e acessórios:
diferente de poder tê-los é viver para obtê-los e obtê-los sem pagá-los (furto).
A realidade é uma constante transformação. A imaginação é a
ferramenta que temos para nos adaptar a ela. Crianças lidam com isso muito bem,
adultos parecem que abandonam essa característica natural e apenas a observam
de longe através dos filmes, teatro e livros. São as atitudes que fazem toda a
diferença. O exercício da criatividade manifestado, por exemplo, no brincar,
torna a vida mais leve e é mais fácil de compartilhar com os outros. Bem
diferente é a mentira, o “faz de conta” sem combinar antes; uma dissimulação
manipuladora que decepciona, desagrega e magoa – e que um dia será descoberta.
Se não raro nos surpreendemos com as reações que temos,
perda total de energia tentar ser o que não somos: a qualquer momento tudo pode
mudar mesmo. Expressar-se de forma clara melhora as noites de sono, por mais
difícil que possa parecer em um primeiro momento, é um hábito recomendável a
todos. Equívocos podem ocorrer, mas é engano representar – fingir demonstra
irresponsabilidade, descomprometimento com si e com quem estiver à volta. Em
períodos de transição e em momentos de fartura, confiança em que nos faz
companhia é essencial.
* * *
Semana que vem começo a oficina de roteiro cinematográfico. Fiquei
muito feliz em ter sido selecionada. A expectativa está grande: foi após uma
oficina no Museu da Língua Portuguesa, “Escrevivendo São Paulo”, que criei
coragem para publicar esse blog. Acredito que os encontros direcionados para a
redação de roteiro serão muito válidos para eu organizar algumas idéias que
ainda estão “na gaveta”, há vários “faz de conta” para contar!
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