Posto da Receita Federal. Após pegar a senha de atendimento,
retirou da bolsa o texto que há tanto precisava ler. Sentou ao seu lado uma
senhora, em conversa comprida, repetitiva, de conteúdo inexpressivo e em volume
alto ao telefone. Porém, enquanto ela observava ao redor se algum lugar mais
silencioso ficaria vago, a tal senhora desligou o telefone e dirigiu-lhe a
palavra:
- Temos que agradecer sempre, minha filha, a vida está boa é
agora.
O olhar mantido no texto, contudo, não foi suficiente para
finalizar a conversa:
- Eu sempre digo isso aos meus filhos. Essa mesma, com quem
eu estava falando, trabalha demais a coitada. E eu digo a ela: agradeça pelo
trabalho.
Sem opção de outro lugar para sentar, nem de silêncio, procurou
com a ironia acabar com o diálogo.
- Que bom que hoje estava tranqüilo e ela conseguiu
conversar com a mãe ao invés de trabalhar.
Mas a mulher continuou:
- Sabe, antes eu não pagava imposto. Agora a coisa tá tão
boa que até imposto vou pagar – falou rindo de satisfação. Recebi a cartinha e
vão deixar parcelar. Uma parcela a mais, uma parcela a menos... o importante é
ter como pagar todas. (suspiro) Só quero ver o valor dessa parcela...Mas não
reclamo não. Se estou pagando imposto é porque está melhor. Meus filhos
começaram a pagar imposto antes de mim, inclusive essa com quem eu estava no
telefone.
- Não deixa de ser uma forma otimista de ser...
- Ah! Eu sou otimista sim. E fico contente quando vejo na TV
que os juros foram baixados de tão boa que está a economia.
- É, pra quem deve ficou melhor. Caloteiro, então, nunca foi
tão bem tratado (outra mulher, no banco de trás assentiu com a cabeça). Em
compensação, as tarifas bancárias, que praticamente todo mundo paga, aumentaram
muito.
- Não pago tarifa, não.
- A senhora deve ser daquelas privilegiadas, cujo empregador
fez convênio com a instituição financeira.
- Sou funcionária pública aposentada, será que é por isso? (Risos)
Viu como tá bom? Com juros mais baixos dá até pra pagar mais tarifa.
- Não vejo essa fartura toda. Só sei que quem não quiser
pagar mais tarifa, e for trocar de banco, só vai conseguir se não tiver
empréstimo algum com ele e, além disso, a não ser que a conta não tenha investimento,
vai perder dinheiro mudando as regras da poupança ou recomeçando a contar a
tabela progressiva do Imposto de Renda. Por outro lado, quem tem responsabilidade
e faz questão de não viver a mentira de possuir o que não tem como sustentar, tá
lascado; vai demorar mais tempo para juntar dinheiro para comprar à vista, já
que tanto o juro pago está menor quanto os preços sobem todo mês.
- Mas tá melhor, sim: pobre não comia enlatado e hoje
pobre não só come como guarda enlatado em casa.
- É que rico não como mais enlatado; o enlatado de ontem é o
orgânico de hoje.
- Orgânico? Orgânico é safadeza!
E nisso o aviso luminoso chamou a senha preferencial e todos
ao redor puderam voltar a aguardar em paz.