domingo, 25 de novembro de 2012

Liberdade aos tons do (não) cinzento 50


A lanchonete era um lugar estreito, muito cliente para pouco espaço. Muita pressa, mais ainda naquele horário. Afastada do balcão em que estava seu sanduíche e atrapalhando com a cadeira todos que por ali passavam, a moça lia.
 
O livro ela escondia no colo, fazendo de seu longo cabelo uma cortina. As pessoas estavam famintas, ansiosas pelo pouco tempo que tinham, pelo tempo a mais que ficariam ali por não ter onde sentar para comer. Fome ela também tinha, menos do que ansiedade pelo que iria acontecer. À sua frente, o pão, agora morno, aguardando.

 
Mudou de página, mudou o lado do cabelo que cobria o papel. O olhar mareado denunciou o ineficaz disfarce. Verificou eventuais mensagens no celular e nem percebeu que continuava afastada do balcão atrapalhando os outros clientes. Xingamentos e reclamações soavam como sussurros da ficção que estava participando.

 
Segurando firme o guardanapo, começou a devorar lanche e texto. Sentada, do jeito e pelo modo como estava, agora, que além do olhar mareado, insistia em limpar com a boca os dedos que sistematicamente retornavam para um já inexistente final de maionese no guardanapo, não se lembrava mais de que havia do que tentar disfarçar.

 
De repente, deixando a capa virada para baixo, fechou o livro em seu colo. Colocou-o dentro de uma pasta e saiu. Na rua, à sua frente, também aguardando o semáforo abrir, um casal de mãos dadas conversava:
- Mas você acha que um homem deve ler? Perguntava o inseguro rapaz.
- Não sei, ainda estou no início da história - respondeu a mentirosa mulher.

 
Riu – mas sem que o casal percebesse – sabia do que estavam falando e era só por isso que em público escondia o livro. Ao seu apaixonado e desempregado irmão não apenas emprestara o outro volume como o incentivara a gravar determinados trechos em um audiolivro artesanal. Gostava da cunhada.

 
Qual o problema de iniciar a leitura de um livro? Gostar? Incrível a persistência da dicotomia coisas de homem, coisas de mulher... As inúmeras capas de revistas masculinas, ampliadas e espalhadas nas bancas de jornal, as quais é obrigada a ver todos os dias, não a tornaram nem mais, nem menos feminina. Por que a leitura de um livro (três, melhor dizendo) deveria ser descartada? Se não gostar, é só parar...

Mal começou a ler o próximo capítulo seu ônibus chegou. Sentou-se na cadeira preferencial, que era mais alta, entre a janela e uma outra mulher. Ainda faltava liberdade para poder ler sem preocupar-se com o entorno. As nuvens mudavam as nuances de tom do céu nublado. A cor cinza nunca mais seria a mesma, mesmo sendo um sobrenome. Havia menos de 50 páginas para terminar a história. O sistema poderia ainda ser decimal, poderia ainda ser binário, mas o número 50 nunca mais seria o mesmo.

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