- Sinceramente, alguma vez você leu ou ouviu falar de alguém
que tenha cortado os pulsos após doar sangue?
- Que ideia!
- Você vem me falar de respeitar a opção do suicida e não
consegue sequer me escutar – e olha que o raciocínio é simples - quando não se
quer mais um objeto, ou uma roupa, o primeiro impulso não é colocar para dar?
Reciclamos até embalagens...
- Sim, e daí?
- Se alguém realmente não quer mais o seu corpo e sabe que
em algumas horas ele será pó ou comida de vermes, o razoável não seria
distribuí-lo para quem muito precisa?
- Ah! Você acha que o cara vai pensar...
- Tá, você acha que jogar-se na frente do metrô é um mero impulso, sem prévia reflexão. Se ele pensasse nos outros, pelo menos na família e nos
amigos que provavelmente sentirão sua falta, ele não se matava. É por isso que eu insisto ser o suicídio uma demonstração
de egoísmo.
- Lá vem você de novo...a pessoa precisa de ajuda.
- Concordo, apesar dessa ser uma contradição sua: se você
respeita a decisão do outro, não há no que ajudá-lo, basta respeitar. Pense bem: o viver é um
conviver após o outro. E conviver é deparar-se com as diferenças e nossas
limitações. Não há limites para o egoísta, há apenas ele e o seu querer. O
suicida é o cara que não consegue participar da festa, apesar de estar nela: não
dança aguardando sua música favorita nem pede outra música para o DJ; espera
ser servido, e é capaz de amargar fome a servir-se de outra comida porque o
garçon não aparece; interage dando ordens e se ouve as pessoas é mero acaso. Ele prefere
desligar a chave geral, sem se importar se há ou não um gerador: se não consegue se divertir do jeito que ele
imagina que os outros conseguem, ele se vinga acabando com a festa de todos.
- Exagero considerar o suicídio uma vingança.
- Há casos e casos, certamente, mas se não for vingança é raiva de sua incompetência em seguir em frente. Para mim, as tentativas
de suicídio existem para o suicida poder ver a reação das pessoas, o quanto
elas se subordinarão às suas vontades, o que tornaria a vida suportável a ele. Não é que deseje a morte, o que ele quer é o mundo que imagina e não existe. Só vou convencer-me de que se trata de
uma decisão madura quando antes de morrer o cara resolver doar não apenas
sangue, mas um rim, um pulmão e uma córnea.
- Credo!
- Por quê? No mínimo vai dar um tempinho a mais para decidir se é o
que ele quer mesmo e, se mudar de ideia, vai estar no lucro – pior é só
arrepender-se quando estiver do outro lado. O tormento é mais do espírito do que do corpo, tirar o corpo não deve alterar muito a realidade. Podemos mudar não apenas o que queremos como os ambientes e
pessoas com as quais convivemos: tem lugar para todo mundo no planeta, mas
depois que saímos dele, ninguém sabe se, quando, e em que condições vai voltar.
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