sexta-feira, 21 de março de 2014

Dando Bolo no Peregrino

Choveu muito e, em seguida, abriu sol. Foi uma semana de mudança de trajeto – uma buzina insistente lhe obrigou a olhar para trás e perceber possível tentativa de assalto, depois, ali próximo, uma mulher ofereceu carona no guarda-chuva e contou que tinha medo de passar naquele tão conhecido lugar. Entendeu o recado e mudou de caminho.

 

Algumas quadras a mais e dezenas de zumbis pelas ruas. O termo certamente não é o mais apropriado, mas como descrever pessoas em trapos, com olhar e andares vagos? Bem, novos caminhos, novas vivências. Em frente a um hotel, fãs de algum artista estrangeiro aguardavam. O pedinte tinha um isqueiro. Percebeu que os homens fumando não falavam português, dirigiu-se às meninas que lhe disseram “você não é mais pobre”.

 

Lógico que o homem ainda era pobre, a adolescente referia-se ao esculacho do programa da Prefeitura: moradia + 3 refeições + R$15 por duas horas de capacitação. Receber R$ 7,50 a hora, sem precisar comparecer todo dia e, mesmo assim, ter comida e casa garantida, nem profissional especializado consegue – resta saber qual o raciocínio para pensar que a pessoa vai largar o vício e essa vida para ganhar menos e passar por mais privações.

 

Raciocínio simples: R$ 7,50 x 220 horas mensais = R$1650,00, remuneração que o INSS já considera intermediária, com desconto maior: o trabalhador celetista tem pelo menos 6% de desconto de VT e, nesta faixa, já desconta 9% de INSS, ou seja, só quem ganha R$1941,00 por mês tem o líquido de R$1650 – mas ainda assim tem que pagar por moradia e comida.

 

É esperar para ver se vai dar resultado, tomara que dê, para não ser mais dinheiro jogado fora, privilegiando quem “chuta o balde” em detrimento do que se sacrifica. Doença? Em alguns contextos, difícil saber o que é mais doentio, se permanecer ou fugir, só que nesses contextos não se mexe, nem nos mais simples que atingem a todos.

 

Banheiro público a cidade continua sem. Daria dignidade a todo mundo e melhoraria inclusive a mobilidade das pessoas – não dá para pensar que obrigatoriamente as pessoas não saberão usar, nem achar que os estabelecimentos comerciais precisam disponibilizá-los.

 

Falta de banho dificulta a socialização de qualquer vivente, se não estão ainda exigindo que os empregadores ofereçam chuveiro, para melhorar a convivência dentro do transporte público, nada mal se houvesse a sua oferta desvinculada do pseudo cárcere privado dos abrigos – mesmo que sendo pago a valor simbólico.

 
Afinal, o que faz uma pessoa sair cedo de casa, ficar em média 2 horas de pé num transporte lotado, trabalhar o dia todo, voltar à noite, quase não ver família, viver em ambiente violento e, mesmo assim, seguir as regras sociais? Há estudos de antropologia baseados em uma ideia totalmente contrária ao programa, em que se valoriza o conhecimento de pessoas que dão certo, apesar das adversidades, como forma de compreender seus valores para multiplicar o modelo - mas recebem menos financiamento e vendem menos jornal, devem dar menos voto também.

 

 

“Situação de rua” dizem que é o correto, mas é também uma crítica a quem possa ter preferido as estrelas à sociedade. Aquele homem que abordou a menina poderia ser um desses, um peregrino sem vício ilícito, como sempre houve.

 * * *

 

Não era essa a motivação do texto, mas o bolo – ou melhor - os bolos deixados em cima de uma lixeira.

 

Como estava dizendo, sexta-feira choveu forte, depois abriu um sol muito forte também, ou seja, a lixeira de plástico, grudada no poste em uma altura superior a um metro do chão, deveria estar limpa quando colocaram dois bolos lindos, daqueles redondos, feitos no fogão, em cima dela. Duas vezes pelo menos 20 grossas fatias de um bolo dourado.

 

O lugar era bem próximo à faixa de segurança, em um cruzamento em que o pedestre nunca tem vez, é preciso esperar que o sinal abra e não venha mais carro – ou então que haja congestionamento para driblar as frenéticas motos.

 

Naquele horário não havia ninguém. O primeiro impulso foi querer chegar mais próximo, para sentir o cheirinho de fresco. Com sono se faz cada coisa... e se mais perto não desse para segurar a vontade de provar? Comer comida do lixo? E nada dos carros passarem, nem a vontade. Rato não subiria ali, barata facilmente, mas por que se daria ao trabalho com tanta oferta largada nas calçadas e sarjetas? Assim que possível, a rua foi atravessada e a lixeira ficou para traz. O desejo permaneceu como companhia.

 

Se a ideia era que alguém pegasse o doce, por que não embalou? Por mais que pessoas remexam o lixo, será que expor daquela maneira seria adequado? Não havia ninguém para oferecer, caso estivesse bom? E se não estivesse próprio para consumo, por que deixar ali? Por que a tendência é desconfiar do que é ofertado, ou do que se consegue sem esforço consciente, como se não houvesse merecimento ou fosse preciso desgaste para ser digno da benece?

 

Aqueles dois lindos e apetitosos bolos, em cima de uma lixeira teoricamente limpa, um deles encostando só no outro bolo, ainda incomodavam. Doação em dobro, feita pela metade. Alguém cozinhou muito mais do que precisava, ou estava de sacanagem colocando ali? Não são todas as perguntas que têm resposta.

 

 

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