Delirando em jejum
- 5 anos sem um hemograma?
Afastava a apreensão mantendo-se em dúvida se o que mais lhe
incomodava era a cara de espanto ante o ultrassom ou a condenação sumária à
mamografia e, agora, mais essa: mas paciente é quem tem paciência, melhor não
mencionar que nos cinco anos havia estado lá.
Os dias estavam difíceis, antecipou o check up em um ano de
carnaval tardio. Quando finalmente atenderam do outro lado da linha, não
conseguiu ler o que estava escrito. Digitalizou os documentos (sim, todos
pediram o tal hemograma, com letrinhas ao lado, mas iria fazer uma vez só) e a
clínica, além de poucos atendentes, também já estava sem espaço para receber arquivos.
Menos trabalho ir pessoalmente do que ir a qualquer outro
endereço. Saia da rotina, sugeria o horóscopo da revista da recepção. Bem, era
o que de certa forma iria fazer. Ela e tantos outros, alguns viajando, talvez
os profissionais dali porque não, não era possível fazer tudo no mesmo dia –
nem atendendo durante o carnaval.
Dos males o menor, havia compatibilidade entre água e jejum.
E que sede vinha sentindo! Mais agora do que no calor, o calor que ainda fazia,
é verdade. Caminhando, percebeu as duas câmeras e o vazio entre elas. De
repente, “bom dia” e uma flor. O rapaz da câmera perguntou se havia gostado e
ao responder-lhe passou um ruidoso ônibus.
Isso faz alguns dias. É que ouviu agora que a vida é feita de
tempo, como também que o tempo sempre está lá. São as pessoas que
o medem que passam, não ele.
E ela havia passado naquele vazio, não desviou, nem recusou
a flor. Ficou de lembrança. Não se lembrou o que havia acabado de falar e tentar
repetir não conseguiu, tivesse falado diferente, mesmo assunto, de outra forma,
teria sido melhor. Fazer o quê? Na confiança de não haver edição, participou.
Agora, pensa que a edição não seria má ideia. Quem sabe um
dia se veja – vai estar no YouTube, disseram. E ouvir é o que mais tem feito.
Por isso sabia que pessoas estavam fazendo perguntas por lá, algo como “quer
ser feliz?”, “quer ganhar na loteria?” e não recebiam respostas, ouviam
negativas, ou o “obrigado” com entonação de recusa.
E se fosse pra valer? A flor foi uma surpresa, tal como a
vida oferece. Com qual pressa caminham na vida pessoas que recusam felicidade
ou o resultado da loteria? Foco ou alienação?
Romanos já tiveram a sua época, tempo em que só poderosos
tinham roseiras: rosas só nascem uma vez, a não ser que sejam podadas. A escolha
de um terreno destinado para o seu plantio, o cuidado em observar galho por
galho e saber o momento certo do corte para que se perpetue a florada é
simbolismo esquecido, não há momento que valha a morte de um ser, menos ainda rarear
o que é belo.
Em vaso ou na terra, flores retomam o significado, são mais difíceis de
serem mantidas – flores sem raízes não são feitas para sobreviver. Mas ali, frente
à câmera, acha que agradeceu, não se lembra, afastava a pressa mantendo-se em
dúvida no que falar.
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