segunda-feira, 3 de março de 2014

Delirando em jejum


- 5 anos sem um hemograma?

 

Afastava a apreensão mantendo-se em dúvida se o que mais lhe incomodava era a cara de espanto ante o ultrassom ou a condenação sumária à mamografia e, agora, mais essa: mas paciente é quem tem paciência, melhor não mencionar que nos cinco anos havia estado lá.

 

Os dias estavam difíceis, antecipou o check up em um ano de carnaval tardio. Quando finalmente atenderam do outro lado da linha, não conseguiu ler o que estava escrito. Digitalizou os documentos (sim, todos pediram o tal hemograma, com letrinhas ao lado, mas iria fazer uma vez só) e a clínica, além de poucos atendentes, também já estava sem espaço para receber arquivos.

 

Menos trabalho ir pessoalmente do que ir a qualquer outro endereço. Saia da rotina, sugeria o horóscopo da revista da recepção. Bem, era o que de certa forma iria fazer. Ela e tantos outros, alguns viajando, talvez os profissionais dali porque não, não era possível fazer tudo no mesmo dia – nem atendendo durante o carnaval.

 

Dos males o menor, havia compatibilidade entre água e jejum. E que sede vinha sentindo! Mais agora do que no calor, o calor que ainda fazia, é verdade. Caminhando, percebeu as duas câmeras e o vazio entre elas. De repente, “bom dia” e uma flor. O rapaz da câmera perguntou se havia gostado e ao responder-lhe passou um ruidoso ônibus.

 

Isso faz alguns dias. É que ouviu agora que a vida é feita de tempo, como também que o tempo sempre está lá. São as pessoas que o medem que passam, não ele.

 

E ela havia passado naquele vazio, não desviou, nem recusou a flor. Ficou de lembrança. Não se lembrou o que havia acabado de falar e tentar repetir não conseguiu, tivesse falado diferente, mesmo assunto, de outra forma, teria sido melhor. Fazer o quê? Na confiança de não haver edição, participou.

 

Agora, pensa que a edição não seria má ideia. Quem sabe um dia se veja – vai estar no YouTube, disseram. E ouvir é o que mais tem feito. Por isso sabia que pessoas estavam fazendo perguntas por lá, algo como “quer ser feliz?”, “quer ganhar na loteria?” e não recebiam respostas, ouviam negativas, ou o “obrigado” com entonação de recusa.

 

E se fosse pra valer? A flor foi uma surpresa, tal como a vida oferece. Com qual pressa caminham na vida pessoas que recusam felicidade ou o resultado da loteria? Foco ou alienação?

 

Romanos já tiveram a sua época, tempo em que só poderosos tinham roseiras: rosas só nascem uma vez, a não ser que sejam podadas. A escolha de um terreno destinado para o seu plantio, o cuidado em observar galho por galho e saber o momento certo do corte para que se perpetue a florada é simbolismo esquecido, não há momento que valha a morte de um ser, menos ainda rarear o que é belo.

 

Em vaso ou na terra, flores retomam o significado, são mais difíceis de serem mantidas – flores sem raízes não são feitas para sobreviver. Mas ali, frente à câmera, acha que agradeceu, não se lembra, afastava a pressa mantendo-se em dúvida no que falar.

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