quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Não tão distante assim

Águas Calientes foi uma das recomendações de visita que recebi de minha dentista da época da viagem, ela que havia percorrido todos os Andes de moto. Acredito que o local tenha sido inesquecível um dia, mas o que encontrei em 2003 foi pobreza, uma vila com a única rua pavimentada destinada exclusivamente ao comércio de lembranças (é impossível sair de Machu Picchu e não passar na tal rua, que fica na entrada da estação do trem, única possibilidade de retorno), e um uníssono murmuro de “compra amica”. Na saída de água quente, que fica a menos de 1 Km dali, há dois tanques de concreto. Isso mesmo. Um é alto e tem dois canos, utilizados como chuveiros pela população local. Não, não tinham os furinhos que tornam agradável a queda d’água: os moradores tomam banho com sabonete e roupa de baixo na frente dos turistas, que tem o outro tanque para se molhar. O volume de água é expressivo e a temperatura bem quente, o que dissolve o sabão do banho dos moradores e faz pensar que nenhuma bactéria sobreviveria no segundo tanque (o que quando fui só tinha turistas).


O cenário como um todo permitiu que eu apenas tivesse coragem de molhar a mão, e percebi que a qualidade da água era boa, daquelas bem puras, que hidratam a pele. Só criei coragem para tal façanha porque sei que não volto lá (isso considerando que o Peru integra meu seleto grupo de países sempre considerados como destino de férias).

A notícia do rádio é de que 180 brasileiros, quase 10% do total de turistas ilhados em Águas Calientes, estão lá há dois dias, com fome, sede e frio, sem posicionamento do governo brasileiro quanto ao resgate – ainda estão estudando o que fazer.

Nada é dito quanto a turistas na trilha Inca (são pelo menos 5 caminhos diferentes, dependendo do nº de dias de caminhadas) e este silêncio me deixa preocupada – em condições normais o desgaste do percurso já é muito grande, com risco de hipotermia. Pelas entrevistas, estão ilhados os que fizeram o passeio de um dia, sai de manhã e volta à noite à Cuzco. E os que chegam exaustos após dia de caminhada? E os que estão ainda caminhando?

Eu fiz a trilha de 2 dias, abaixo de chuva, os degraus da época Inca (alguns tiveram que ser reconstruídos) eram altos e escorregadios, feitos de pedra e com um pouco de limo, sem corrimão, lógico, apenas um penhasco ao lado (quem tem fobia de altura nem pense em ir).

Na caminhada são conhecidas várias ruínas, a maioria templos, destinados a isolar pessoas que iriam ser sacrificadas. Em tese seria uma característica primitiva, uma curiosidade de algo já superado pela sociedade contemporânea. Contudo, considerando as notícias de pessoas que têm sido espetadas e até pessoas que se privam do que sinceramente querem (e meninos que estão desaparecendo em Goiás?!), o sacrifício está presente, e bem presente no cotidiano.

Haverá o dia em que sacrifício será compreendido como uma transformação de percepção, algo interno e individual, que depende da compreensão de cada pessoa do que não lhe serve mais, um processo natural, (cada um de nós cresce em seu próprio ritmo, certo?) dolorido por extinguir o que nos acompanhou até aquele momento, a ter exteriorizado o seu resultado somente. É, para mim sacrifício também sempre foi apresentado como uma oferenda, mas parece-me mais coerente o seguinte raciocínio:

Se hoje não lembramos nem compreendemos os nossos sonhos, mesmo conscientes de que são mensagens, imagina como era difícil falar sobre transformação para quem sequer sabia o que iria colher ou caçar no dia seguinte... A pessoa que tentasse ia ser ignorada e morreria de fome (quem pararia de cuidar de sua sobrevivência para refletir sobre si ou sobre o universo? Quem, cuidando de sua sobrevivência, mudaria este foco?) Deve ter sido esta a origem dos rituais, alguém não tão habilidoso com a caça e com a colheita desenvolveu outra habilidade e, para que os outros caçassem e cultivassem o solo para si, investiu-se de poder e passou a fazer celebrações utilizando arquétipos reais para passar a mensagem universal de constante transformação: obrigado pelo que sou/tenho (o inocente bichinho ou a pureza das virgens), mas aceito melhorar/confirmo que quero continuar assim...

Melhorar é mudar e toda mudança mata o que não existe mais. É simples. O fumante mata o homem saudável mas, ao parar de fumar, pode até recuperar a saúde, mas não ressuscita o homem saudável que foi, apenas matou o fumante. O estudante mata sua ignorância, pode até esquecer o que estudou, mas não perderá a responsabilidade do conhecimento que já teve. A moda utiliza este processo, todos mudam de tempos em tempos, permanecendo iguais, exteriorizam o que deveria ser interno.

Todo este devaneio para registrar que enquanto há vários desabrigados e sem teto, após mais de 4 meses nosso ilustre hóspede e comitiva deixarão a Embaixada de Honduras. Qual o sentido de brigar para adotar uma criança Haitiana tendo tanta criança órfã, que fala português e com menor choque cultural em relação a famílias brasileiras? Enquanto permite cidades sem saneamento básico crescendo desordenadamente, o Brasil vai coordenar a reconstrução do Haiti (será que depois aplicarão aqui o que for aprendido no Caribe?). Se ainda não são possíveis todas as possibilidades de melhoria simultaneamente, como brasileiros, qual transformação queremos: melhor representação no mundo ou melhor qualidade de vida para, depois, como exemplo (não pelo poder), expandi-la ao mundo?


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