sábado, 6 de agosto de 2011

A vida é a melhor ficção

- Alô.
- Olá, estou retornando uma ligação sua, de ontem à tarde – quando o telefone tocou não tinha condições de atendê-lo.
- Não lembro... Quem é você?
- Sou a usuária do telefone que você vê no seu celular. Seu telefone constava como fora de área, por isso não consegui retornar a ligação antes.
- Ok, mas seu nome, para eu tentar me lembrar.
- Por uma questão de segurança, por enquanto, prefiro não me identificar. Ligações desconhecidas e telefones desligados por longo tempo podem indicar ligação originária de algum presídio.
- Deve ser isso, você identificou que eu ia te aplicar um golpe, agora não vou mais conseguir. Francamente! Faço várias ligações por dia. Mas ontem à tarde... posso ter digitado o número errado.
- Não vou discutir, se você se lembrar do motivo da sua ligação e ele for relevante, meu telefone você já tem.
Desligaram o telefone e foram assistir à mesma programação da TV, cada um em sua casa.
 
* * *
- Alô.
- Olá, estou retornando uma ligação sua, de ontem à tarde – quando o telefone tocou não tinha condições de atendê-lo.
- Não lembro... Quem é você?
- Nossa está tocando uma música alta perto de você, está difícil de escutar.
- É... um caminhão de som aqui da rua. Aaaaaaaaaiiii!
- O que houve?
- Um carro passou na poça de água da sarjeta e me molhou toda!
- Acho que estou te vendo: de terno azul escuro, bolsa e sapato vermelhos.
- Fala mais alto, tem música muito alta próximo a você.
- Acho que não nos conhecemos, você pode ter me ligado por engano, mas é o mesmo caminhão que fazia propaganda próximo a você que agora está próximo a mim.
- Conhecidência!
- Pois é, vou ter que desligar porque vou fazer a unha.
- Eu sou nova na região e estava precisando da indicação de uma manicure...
- Fica aí onde você está que eu te levo para conhecer a minha.
Foram juntas à manicure, ficaram amigas, e nunca mais falaram sobre o tal telefonema do dia anterior.
* * *
- Alô.
- Olá, estou retornando uma ligação sua, de ontem à tarde – quando o telefone tocou não tinha condições de atendê-lo.
- Não lembro... Quem é você?
- Pelo o que todos dizem, eu sou o melhor representante comercial: vendo o que você precisa, compro e troco o que você não quiser mais.
- Qualquer coisa?
- Tudo que for lícito ou eu tenho, ou está para chegar.
- Ando sem tempo, você poderia ajudar bastante. Podemos marcar uma happy hour?
- Fechado!
Encontraram-se e vários negócios foram feitos a partir dali. Sem muito esforço seu segredo permanecia guardado: ligava aleatoriamente para telefones, passava por amigo e, assim, conquistava novos clientes.
* * *

A vida é a melhor ficção. Em segundos tudo muda, não adianta planejar. Planejar gera ansiedade (quando vai acontecer?) e frustração (por que não aconteceu ainda?). Existe uma aparente lógica para o desenvolver da vida, claro, mas convenções sociais nem sempre são úteis. Somos ensinados que na vida adulta adquire-se responsabilidade, só que já nascemos naturalmente responsáveis. O motivo de alguns perderem isso no decorrer da existência, não sei.

Brincar é a principal atividade infantil – e toda brincadeira é combinada antes, instintivamente há preocupação com que o outro participe e se divirta também. Desde o brincar de esconder-se, do pega-pega, do “faz de conta que...”, o que vai acontecer é combinado antes. O momento da brincadeira terminar também o é. Mesmo assim, com tudo combinado antes, às vezes não dá tão certo, como quando a mãe interrompe para um lanche.

Crianças grandes também podem continuar brincando de “faz de conta” de forma salutar, censurar-se só atrapalha o viver e demonstra preconceito. Impressionante que para alguns seja impensável brincar que o taxista é seu motorista particular, mas não se importam em adquirir um veículo cujo leasing não é possível pagar. “Fazer sinal para o Jarbas parar” é atitude de criança grande responsável. Ter além das posses é enganar, mentir – prejudica quem confiou, mesmo que a confiança tenha sido por parte do vendedor. O mesmo pode ser empregado em relação à aquisição de roupas e acessórios: diferente de poder tê-los é viver para obtê-los e obtê-los sem pagá-los (furto).

A realidade é uma constante transformação. A imaginação é a ferramenta que temos para nos adaptar a ela. Crianças lidam com isso muito bem, adultos parecem que abandonam essa característica natural e apenas a observam de longe através dos filmes, teatro e livros. São as atitudes que fazem toda a diferença. O exercício da criatividade manifestado, por exemplo, no brincar, torna a vida mais leve e é mais fácil de compartilhar com os outros. Bem diferente é a mentira, o “faz de conta” sem combinar antes; uma dissimulação manipuladora que decepciona, desagrega e magoa – e que um dia será descoberta.

Se não raro nos surpreendemos com as reações que temos, perda total de energia tentar ser o que não somos: a qualquer momento tudo pode mudar mesmo. Expressar-se de forma clara melhora as noites de sono, por mais difícil que possa parecer em um primeiro momento, é um hábito recomendável a todos. Equívocos podem ocorrer, mas é engano representar – fingir demonstra irresponsabilidade, descomprometimento com si e com quem estiver à volta. Em períodos de transição e em momentos de fartura, confiança em que nos faz companhia é essencial.

* * *

Semana que vem começo a oficina de roteiro cinematográfico. Fiquei muito feliz em ter sido selecionada. A expectativa está grande: foi após uma oficina no Museu da Língua Portuguesa, “Escrevivendo São Paulo”, que criei coragem para publicar esse blog. Acredito que os encontros direcionados para a redação de roteiro serão muito válidos para eu organizar algumas idéias que ainda estão “na gaveta”, há vários “faz de conta” para contar!

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